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A todas as pessoas que amam o simples e abominam o
simplório. Este livro é para você que possui a capacidade de se debruçar
sobre as manifestações emanadas diretamente do povo para o povo. É
dedicado a quem tem faculdades distintas capazes de discernir e perceber
as nuance da arte, do talento, do amor e das várias manifestações e
facetas que a Doutrina Espírita distribui a seus filhos provisoriamente
encarnados.
A mineiridade impregnada á narrativa inicial e a forma
intimista e despretensiosa em que o livro foi concebido levam a um
mergulho saboroso as mais doces memórias que o interior oferece ao
nosso inconsciente coletivo. Este mergulho segue aprofundando-se sobre
o cotidiano do personagem Alexandre. Sua vida corriqueira acontece na
fictícia cidade de nome Cristalina e no interior do interior, de uma
comunidade rural chamada Arabizá durante a minimalista década de 90.
O marco separador da trama é o instante em que Alexandre se
depara com um misterioso fenômeno. Desde então surge o seu divisor de
águas, aquele momento em que os eventos, mudanças e os fatos nos
convidam a visitar as encruzilhadas da vida. A refletir sobre nossa zona de
conforto e as novidades e transformações que já não se encontram mais
dentro dela. Alexandre parte em uma investigação no intuito de
desvendar o tal mistério. Porém à medida que avança em suas buscas ele
se depara com algo muito mais importante. Algo que transpõe a própria
vida de Alexandre e vai de encontro com a comunidade do Arabizá. Agora
começa uma verdadeira corrida contra o tempo. Cada decisão, cada
busca, cada atitude de Alexandre no presente, cada volta dolorosa a um
passado distante marcado por paixões viscerais, riquezas suntuosas
adquiridas de formas obscuras e sinistras, em fim, cada elemento da
trama servirá de ferramentas para que Alexandre possa discernir e tomar
as decisões certas para salvar a comunidade do Arabizá.
Aos escritores justifico a concepção deste livro
deixando bem claro que não sou e não tenho a pretensão de me alto
intitular escritor e sair por ai jorrando palavras pelo vasto universo da
escrita. Como todo bom Mineiro sou apenas um grande contador de
causo. É neste estilo que me encontro e justifico o fato de ser e escrever.
Pois escrever é ser, para mim. É o instinto de partilhar vivências, idéias,
experiência, que me arrasta para o universo da escrita. E como não sou
escritor profissional ainda, a forma que abri mão para ir de encontro ao
leitor foi à capacidade que tenho de contar causos.
Nunca subestimei esta capacidade, pois só através deste
dom conseguimos conceber uma obra tão peculiar e inusitada quanto à
vida real o pode ser. Somente através do causo alcançamos a
metamorfose de estilo necessária para retratar as nuances da
personalidade de um adolescente e exemplificar de forma clara e objetiva
todas as estruturas caóticas e fascinantes da vida cotidiana no momento
preciso em que a mesma pulsa. O causo consegue captar a fluidez do rio
da vida, todas as curvas, poças, abismos, pedregulhos, bancos de areia e
remansos. Este rio passará pelo leitor e aquele que nele mergulhar se
identificará com o rio e as perguntas, esperanças e desejos do rio já não
serão mais dele.
Termino deixando minha obra a mercê daqueles que
conseguem entender a dimensão da mesma.
O projeto deste livro foi concebido através do processo de
psicofonia. Embora seja apenas um romance e uma obra de ficção a
forma e os fatos que nos inspiraram foram extraídos de vivencias e
pessoas que já deixaram este plano e outras que ainda estão nesta terra.
Com a ajuda de diversos amigos desencarnados que me ditaram
trechos inteiros e me inspiraram e muito me influenciaram a escrever,
somente assim conseguimos transformar este projeto em realidade. Meu
sonho era escrever um livro, porém somente quando me deparei com
estes Espíritos foi que consegui desenvolver e concluir este projeto.
A vocês minha eterna gratidão!
1 O Arabizá.
12h45min.
--- Mãe cheguei!
Gritou Alexandre e bateu a porta da sala entrando apressado pelo
recinto. O garoto jogou a mochila do colégio em cima do sofá e subiu as
escadas correndo em direção ao seu quarto. Já no quarto Alexandre abriu
o guarda-roupa rapidamente. Estava eufórico! Esperou por aquele
momento o semestre todo. Pegou uma grande mala de viagens e
colocou-a aberta em cima da cama. E foram cuecas, meias, cintos,
perfumes, escova de dente, toalhas, e quase todo o armário de Alexandre
pra dentro de sua mala de viagens:
--- Preciso enfiar tudo isto aqui nesta mala! Tem de caber aqui. O mais
importante eu levo na mochila.
Dito isto, Alexandre continuou enfiando roupas na mala. Finalmente
depois de muito esforço e pressa ele conseguiu arrumar tudo o que queria
e precisava para viagem. Em seguida Alexandre brigou um tempo com o
zíper porque não podia fechá-lo. Alguns instantes depois Alexandre
ganhou a briga com o zíper e olhou para mala estufada e finalmente
fechada em cima da cama.
--- Pronto.
Ele deu um suspiro de alívio, mas lembrou de relance que faltavam
muitos preparativos ainda. Saiu do quarto, correu para o banheiro no
final do corredor, tirou a roupa e quase abriu o chuveiro.
--- Não posso tomar banho aqui, minhas coisas estão no outro
banheiro.
Vestiu novamente a roupa, passou pelo corredor, entrou no quarto
de seus pais, abriu o guarda-roupa de sua mãe e adentrou a porta falsa de
acesso a suíte do casal. Tomou banho, vestiu a única peça de roupa limpa
sua, que não foi pra dentro da mala e desceu voando as escadas.
9--- Mãe, mãe, cadê o uniforme do meu time? Não vi nada lá em
cima!
--- Tenha calma Alexandre vai almoçar primeiro! Tem dois
uniformes passados e arrumados lá na área de serviço.
--- Mãe eu vou levar tudo!
--- Pra quê Alexandre? Quatro uniformes? Leva só dois. Um para
treinar e outro para as disputas de domingo.
--- Preciso levar os quatro! Vou ficar muitos dias no Arabizá, pode
chover, dar barro, poeira, vaca comer.
--- Deixa de ser maluco meu filho. O Arabizá fica só oito
quilômetros da cidade. Se precisar de alguma coisa seu pai coloca no carro
e leva pra você domingo. Já inventou celular, sabia?
--- Mas assim vou ter de treinar sem uniforme até o fim de semana!
Não vou poder esperar este tempo todo.
--- Olha, eu é que não posso esperar mais meu filho. Já fez seu
prato?
--- Sim, mamãe!
--- Então vai almoçar lá na sala de jantar porque eu estou sem
empregada hoje e preciso arrumar esta bagunça na pia.
--- Posso comer na sala de TV mamãe?
--- Não! Não na sala de visitas, nem à sala de som, tão pouco na sala
de estar, nem na varanda em frente à piscina, no escritório, na cozinha, na
despensa, na área de serviço, na garagem, em nenhum destes lugares
Senhor Alexandre. Que mal a sala de jantar lhe fez?
--- Pode deixar mamãe! Mas a senhora vai ver só. Hoje eu sou um
simples reserva do time de futebol de várzea do Arabizá, mas um dia vou
jogar no ataque. Quero ver a Senhora me impedir de comer na sala.
--- Você pode jogar até no Real Madri, mas vai continuar almoçando
na sala de jantar campeão!
10Depois de engolir a comida, quase que sem mastigar Alexandre
correu para a sala de visitas. Lá pegou a mochila com o material escolar e
levou para seu quarto. Chegando ao quarto ele esvaziou a mochila com o
material da escola, em seguida correu para a área de serviço da casa com
ela. Desobedecendo as ordens da mãe Alexandre colocou os dois
uniformes secos do time de futebol na mochila e os outros dois, que ainda
estavam molhados também. Pois os uniformes molhados dentro de sacos
plásticos para não molhar os uniformes secos, não molhar a mochila e o
par de chuteiras e meões que estavam dentro dela.
Tudo pronto o garoto correu para o carro de sua mãe na garagem.
Acomodou a mala no porta-malas e a mochila ficou em seu colo.
Seguiram-se minutos de aflição para Alexandre. Aguardava ansioso dentro
do carro o pai chegar do serviço na câmara de vereadores e a mãe
terminar de embalar quitutes, guloseimas e outros mimos que seriam
entregues para avó de Alexandre no Arabizá.
E assim depois de todos os protocolos, recomendações maternas,
procedimentos de viagens familiares, sermões paternos, verificação de
trancas e portas da casa e demais tramite, finalmente, para alegria de
Alexandre a família Lemos conseguiu partir para o tão sonhado Arabizá.
Dentro do carro de sua mãe, que também era sua professora de
geografia, Alexandre não cabia em si de tão contente. Era um desses
momentos familiar em que todos estavam muito felizes e descontraiam-se
com conversas triviais. À medida que o assunto esquentava a paisagem
urbana ia ao poucos se transformando em paisagem rural. E a viagem de
fusca seguia tranqüila. E como era de costume durante as viagens a família
Lemos começou mais um de seus famosos debates. O assunto principal
deste debate em questão era á comunidade do Arabizá:
--- Nossa meu filho, que felicidade é esta? Até parece que você está
viajando pra Disney!
--- É verdade meu pai! Se dependesse de mim o senhor vendia a
casa na cidade e nós nos mudávamos pro Arabizá hoje mesmo. Eu nem
voltava para Cristalina depois destas férias.
11--- O dia que isto acontecer eu largo do seu pai e ponho vocês pra
morarem na casa da sua Avó Alexandre.
--- Mas verdade seja dita minha querida o Arabizá é um ótimo lugar
para um garoto de 16 anos feito o Alexandre se desenvolver.
--- Concordo Papai! E pro senhor é melhor ainda, pois é de lá que
vem os seus eleitores mais fieis.
--- Não sei qual dos dois é mais criança. Imagina deixarmos a
comodidade de uma cidade estruturada e asfaltada igual à Cristalina pra
nos embrenharmos em estradas que em certos meses são de barro, e em
outros meses são de pó.
--- Mãe! Cristalina é só uma versão mais ou menos, maior que o
Arabizá.
--- O quê você chama de mais ou menos filho? 9.000 habitantes de
Cristalina, contra 965 do Arabizá?
--- Nosso filho tem razão amor! Tudo o que tem em Cristalina tem
no Arabizá.
--- Vocês não estão falando sério, estão? Aqui em Cristalina tem a
fábrica de cimento que emprega quase toda a população da cidade, tem a
Igreja Matriz de frente a uma grande praça, tem o Rio Grande que
serpenteia pelas áreas nobres e planas de Cristalina, tem casebres
bucólicos e limpinhos fincados nos altos dos morros, tem vários bairros,
tem quase seis escolas públicas, um hospitalzinho modesto, mas
funcional, postos de saúde, uns belos casarios antigos, prédios como a
câmara, que foram tombados, nossa malha ferroviária, uma das poucas a
oferecer viagens e passeios de trem, rede hoteleira, antigas fazendas que
se tornaram hotéis, pensões para universitários, a faculdade federal, a
pizzaria, a sorveteria, o fórum, o correio, a delegacia...
--- Veja Alexandre sua mãe quando começa defender Cristalina não
para mais.
12--- Estou apenas enumerando as coisas que minha bela cidade
natal, também conhecida como a Princesinha das Montanhas, que atende
pelo nome de Cristalina, tem. Agora eu lhes pergunto cavalheiros. O quê
que o Arabizá tem?
--- Por onde a gente começa a falar papai?
--- Não sei filhinho! São tantos adjetivos que o Arabizá tem. E estes
adjetivos destacam o Arabizá desta tal Princesinha do fim do mundo cujo
nome é Cristalina. São tantos que eu não consigo nem enumerá-los.
--- Pra começo de conversa mochinhos todos os dois meninos são
Cristalinenses. Os dois nasceram na maternidade daqui. Podem olhar no
registro! Não existem Arabisenses. Todo mundo vem pra cá pra nascer e
também para ser enterrado no cemitério daqui de Cristalina. Mas vamos
lá estou ansiosa para saber pelo menos um atrativo que o Arabizá tem.
Olha estou sendo boazinha hoje em! Podem-me dizer pelo menos um. Só
basta um para mim.
--- Pois bem, que assim seja! Senhor Vereador Meu Pai,
excelentíssima senhora Professora licenciada em Geografia Minha Mãe!
Para começo e fim da discutição, eu, Alexandre filho, vou enunciar os três
principais atrativos da nossa querida comunidade rural do Arabizá.
--- Veja que eloqüência ao falar, com certeza este menino puxou a
mim, seu Pai!
--- Só se for à malemolência, pois até agora não falou nada que eu
precise saber.
--- Então como eu estava dizendo... O Arabizá é mundialmente
conhecido pelo seu famoso Morro do Curió. O morro tem este nome por
causa da abundância de curiós, canários e aves raras da nossa fauna
Brasileira.
--- Muito bem meu filho, mas você esqueceu-se de falar que lá
também é famoso pela sua subida íngreme, terrenos cheios de pedras e
areia onde nada que se planta dá. Sem contar a sua estrada de acesso.
13É uma estradinha mixuruca de terra, que cabe só um carro, sem
acostamento, e é muito sinuosa também. E ainda tem as inúmeras
cobras, lagartos, e aranhas da fauna Brasileira e mundial que habitam o
Morro do Curió.
--- Agora sou eu quem vai falar minha esposa. Mesmo sendo
arenoso e rochoso o terreno, o Morro do Curió tem arbustos, vegetação
rasteira, algumas árvores resistentes e frondosas e um lindo riacho de
água bem clara e pura lá no pezinho dele.
--- É verdade meu pai! E este riacho segue por entre uma pequena
floresta que preserva sua nascente, dá sombra e água fresca aos
estradeiros, e abriga todas as espécies de vida.
--- Certo meus amores, mas onde estão os outros dois atrativos do
Arabizá? Essa conversa de pássaros não me convenceu.
--- Explica para ela meu filho!
--- Querida mamãe! O Arabizá é um grande ponto no mapa quando
o assunto é turismo. Ao chegarmos à comunidade, basta andar apenas uns
trezentos metros a frente que logo encontraremos a famosa Cachoeira do
Fubá!
--- Bem lembrado meu filho! Ela tem este nome devido ao histórico
e preservado moinho de pedra. Embora este moinho basicamente seja
apenas uma casa, minúscula, de um cômodo só, antigo e vazio por dentro,
por fora o moinho está preservado e tem a sua roda girando a mais de
cem anos
--- Correto papai! É Bom lembrar que a frente do moinho tem a
belíssima Cachoeira do Fubá e logo á baixo da cachoeira o famoso, fundo e
grande, Poço do Fubá.
--- Muito bem frisado meu filho. É bom informar a sua mãe que no
verão quase toda a cidade de Cristalina vem para o Arabizá se refrescar
nas águas do Poço do Fubá. Muita gente gosta de nadar aqui no Arabizá.
Principalmente turista e certa Professora de Geografia que não quer dar o
braço a torcer.
14--- Vocês me pegaram nesta. Tenho de admitir. Gosto muito do
Poço do Fubá! Mas nada me faz vir ao Arabizá durante o inverno. Isto aqui
é assim, esfriou um pouco que seja o povo some e não vê mais ninguém
da cidade aqui. Só poeira, mato, e os nativos.
--- Mentira mamãe, eu não estou vindo passar as férias aqui?
Friozinho, beira de fogão a lenha, quase um hotel fazenda a casa da avó.
--- Você e seu pai não contam. São dois fanáticos pelo Arabizá. Eu
estou falando de gente normal. Gente que não tem família ou vínculo com
o Arabizá. Duvido que estas pessoas venham para cá no inverno respirar o
pó da estrada. Eu mesma só estou aqui para trazer você, visitar minha
sogra e acompanhar seu pai. Arabizá, inverno, e eu, não nos damos!
--- Veja Alexandre sua mãe está completamente equivocada
novamente.
--- Então me fala benzinho? Qual o motivo as pessoas tem para vir
ao Arabizá no inverno?
--- Deixa que eu resolvo isto papai!
--- Olha mamãe! O Arabizá no inverno é o centro do universo.
--- Isto mesmo meu filho. Convém lembrar sua mãe que toda a
população ativa, inativa, encarnada e até quem já deixou este plano vem
para o Arabizá no mês de Julho!
--- É uma festa só papai! Toda a comunidade se prepara. Cornetas,
tambores, roupas de festas, venda de churrasquinhos, matança de
garrote, porcos e outros assados, refrigerantes, salgados, doces, balas, e
muitos fogos de artifícios...
--- Já sei o que vocês estão tentando me dizer.
--- É isto ai meu filho. Explica pra ela que Julho sempre tem a final
do campeonato intermunicipal! E o campo dos sonhos do Arabizá é onde
os times sempre disputam à final e as melhores partidas.
--- E por falar em time dos sonhos papai, não se esqueça de lembrar a
Professora que o “Timão de Várzea do Arabizá” é o maior de todos.
15--- Sim filhote. Oito anos seguidos disputando e vencendo o
campeonato intermunicipal. Ninguém é páreo para nós. Pode vir outras
comunidades rurais da região, cidades anexas e aquela gente pé torta de
Cristalina. Todos no fim perdem de goleada para o famoso “Arabizá
Várzea Futebol Clube”
--- Somos várzea com muito orgulho! Viva o Arabizá! O melhor
futebol do mundo! Levamos o caneco pra casa todo ano.
--- Eu ouvi dizer meu filho, que este ano vem até olheiro de São
Paulo assistir a nossa final.
--- Ele vai voltar pra casa com as vista doendo, isto sim meu marido.
Imagina a hora que ele se deparar com metade de Cristalina e cem por
cento do Arabizá se acotovelando pra tentar ver uma simples disputa de
futebol na beira do campo? Sem contar que a partida se resume em
adolescentes e marmanjos correndo juntos dentro de um campo, atrás de
uma bola, sem técnica nenhuma, formando um verdadeiro show de
horror repleto de pernas de pau. E o coitado do juiz? Ele fica no meio do
furacão tomando xingamento de todos os lados.
--- Mãe! Este é o futebol raça, o futebol puro, o futebol arte.
--- Só se for Arte moderna Alexandre. Arte do tipo joelhos
estourados. Seu pai surta e pensa que voltou a juventude, enfia os fins de
semanas neste Arabizá, e depois domingo de tardezinha tenho de
acumular função. De professora passo pra enfermeira cuidando dos
hematomas, torcicolos, dores no corpo e feridas dele.
--- Mas a senhora mesma admitiu Mamãe que as finais do Arabizá
atraem a metade de Cristalina pra beira do nosso campo de várzea.
--- É verdade amor! Nosso filho tem razão. Eu vi você falando. Por
tanto este é o melhor de todos os motivos que uma pessoa comum e sem
vínculo tem para vir pro Arabizá no inverno.
--- A Senhora pode não gostar Mamãe, mas a cidade inteira gosta e
vem pra cá ver o jogo.
16--- E não é só o jogo filhote! Tem também os valores culturais
agregados ao evento.
--- Valores culturais agregados? Sabia que meu filho e meu marido
eram fanáticos pelo Arabizá, mas agora estou ficando com medo de vocês
dois.
--- Valores sim querida! Sempre que ganhamos uma partida. E digo
sempre porque é sempre mesmo! O time e as famílias dos jogadores vão
se reunir no Sítio da Cascata. Muita prosa, muita gente reunida, muita
comemoração. Senhor Flávio, dono do sítio é gaucho, assa o melhor
churrasco do mundo, serve vinho bom e também distribui doses de pinga
para adultos beberem e esquentarem o peito. E também a sua esposa
serve um almoço pro time e todas as famílias dos jogadores. Tem arroz
temperado, maionese completa, frango frito, toucinho, torresmo, angu,
feijão tropeiro, carne de vaca assada e a famosa lasanha que ela faz. E de
sobremesa goiabada com queijo. O manjar dos Deuses! E depois que
todos enchem bem a barriga cada um vai pra sua casa descansar e digerir
a vitória.
--- Não Pai! Isto é para os homens feito o Senhor, que tem de
voltar pra casa se não apanha da esposa! A maioria da turma vai até a
vendinha do vilarejo arrematar a tarde jogando truco, sinuca, contando
causos, rindo e bebericando, cerveja, vinho ou pinga.
--- Nem eu, e nem a sua mãe queremos ouvir falar de você mentido
nesta venda Alexandre. Você está proibido de ir lá pra fazer qualquer
coisa. Eu que sou seu pai não freqüento e não quero que você fique lá. Se
a gente souber que você anda freqüentando a venda cancelamos suas
férias no Arabizá para sempre!
--- Eu só vou lá pra comprar pão quando a vovó me pede. E isto eu
faço durante a semana de dia. Esta hora não tem movimento pai. E eu
vou a um pé e volto no outro!
--- Está certo filho, nossa venda também é nosso armazém! Pode ir
e voltar lá, mas só pra fazer favor a sua avó. Mas freqüentar apenas
quando fizer dezoito. E mesmo assim ao nosso contragosto!
17--- Pai o Senhor esqueceu o melhor. Não falou das quermesses que
o Padre Ernani e as Senhoras da Igreja realizam todos os sábados a noite
durante o mês de Julho!
--- Nossa meu querido filho bem lembrado! Dá água na boca só de
pensar, quentão, canjica, pé-de-moleque, doce de leite, goiabada, milho
cozido com manteiga derretendo encima, pipoca, queijo quente.
--- E têm os leilões de galinha caipira, ovo da roça, queijo fresco,
verduras da horta, quitutes, salgados, garrotes, leitões, cavalos e toda
variedade de coisa boa.
--- Meu Deus do céu! Meu marido e meu filho são dois matutos.
--- E não para por ai pai, tem a queima da fogueira de São Pedro, As
missas de sábado à noite, a novena de São Pedro nas sextas, os bingos no
final da missa, os sorteios das rifas da paróquia, as festas de peão na
fazenda dos Quincas as quinta, as rodas de violas na casa do Senhor Nono
nas quartas, a boa prosa e os comes e bebes servido depois do terço de
São Gonçalo na fazenda da Pedrinha, e as pescarias diurnas e noturnas, as
caçadas...
--- Então estes são os valores culturais agregados? Empolgantes
meninos!
--- Pai não adianta explicar a mãe nunca vai entender nosso jeito de
ser Arabizá.
--- Muito pelo contrário meu filho! Foi graças ao Arabizá que eu
conheci seu pai. Minha única razão para freqüentar esta terra.
--- E sabe filhote! O único, e exclusivo motivo que me faz morar em
Cristalina, estão aqui, bem na minha frente dirigindo um fusca, nas
estradas empoeiradas, sinuosas, de pista única, cheias de lombadas,
pedregulhos, mata-burros de madeira, porteiras de tábua velha, em fim.
Sua mãe enfia no meio do sertão do Arabizá só pra agradar a mim e a
você.
--- Olha filho é pelo seu pai e por você que eu suporto vir, e às vezes até
dormir no Arabizá. Respeito, e amo aqui por causa de vocês.
18--- Veja bem filho são por você e pela sua mãe que eu vivo feliz
todos os dias de minha vida em Cristalina. Respeito e amo aquela cidade
por isto.
--- Ai que nojo vocês dois, pare de fazer isto, pelo amor de Deus! Se
vocês se beijarem novamente dentro deste carro eu vou descer pra casa
da vovó sozinho e a pé!
--- Deixa de ser criança filho! Papai e mamãe se amam!
Respeitamos e admiramos as nossas diferenças e procuramos crescer com
elas.
--- É verdade filho! Unimo-nos pra somar! Para partilhar
experiências distintas e promover o crescimento através da comunhão das
diversidades de nossa cultura e personalidade que possuímos.
--- Mãe, pai, é claro que eu sei disto tudo! Não sou bobo! Entendo a
maturidade construtiva de nossos debates amistosos! No fim não é pra
ver quem são os vencedores e sim para conhecer melhor o outro e a nos
mesmo dentro do contexto familiar.
--- Este é o meu garoto! Eu acho que este menino é super dotado!
Olha as palavras que ele usa? Será quem ele puxou?
--- Não sei. Sendo eu a Professora da família sou meia suspeita pra
falar!
--- Escuta aqui vocês dois! Eu só sei de uma coisa! Já estamos
entrando no Arabizá.
--- Nossa meu filho é verdade. A gente nem viu a paisagem passar
direito! Mas eu pude reparar que a grama do campo está muito verdinha
apesar deste frio de doer que está fazendo!
--- É por isto que as finais de Julho são sempre disputadas aqui meu
pai. Nosso campo está construído encima de uma antiga várzea. No tempo
das águas, dependendo do volume de chuvas ele até chega a alagar, mas
no inverno seca e conserva a terra úmida e fresquinha e a grama é sempre
verde por este motivo.
19--- Verdade filho! Só no Arabizá que tem este tipo de geografia. E
por falar em geografia, nada de andar sozinho nas trilhas da estrada velha.
Nem de bicicleta e tão pouco a pé! Aquela estrada é muito antiga, está há
décadas sem passar carros. Só restou a trilha estreita no meio do
caminho. Eu tenho medo daqueles barrancos enormes desabarem e
fechar a trilha. E quando você e seu primo forem lá olhem bem para o
chão. Prestem atenção. Cuidado, pois pode haver cobras nas moitas de
capim.
--- Seu pai está certo meu filho! Eu morro de medo daquela estrada!
É uma trilha muito estreita, cercada de arbustos altos, e vai adentrando a
uma mata muito fechada, escura e fria. Prefiro que você e seu primo
brinquem em torno da igreja e nas ruas do vilarejo.
--- Isto mesmo que sua mãe falou! E têm mais dois avisos Senhor
Alexandre Lemos! O primeiro é:
--- Quando for ao campo, passe pela estrada nova. Ela é
empoeirada, estreita, mas é muito mais segura que a velha trilha da
estrada abandonada. Suba o Morro do Curió pela estrada e não tome
atalhos!
O segundo aviso é:
--- Você, seu primo e seus amigos podem ir juntos na estrada velha!
Mas quando chegar à altura da curva da divisa não entre na trilha que dá
acesso a represa abandonada do Senhor Tati.
--- Mais pai, a represa se rompeu a mais de 50 anos sei lá! Só
ficaram uns brejos cheios de taboas, minas, pequenas poças de água e
trilhas de animais! Não tem perigo. Lá só tem uma represazinha de nada
no meio disto tudo onde a gente pesca uns lambaris, e o Poço do Bambu
lá perto, mas a gente nunca vai nele.
--- Não quero saber de você indo sozinho na represa do Sr. Tati!
Aquilo é um labirinto muito perigoso. Podem esconder voçorocas, galerias
de água subterrâneas. Eu nasci e me criei aqui. Cansei de ver a terra ceder
e nascer poços da noite pro dia lá.
--- Nunca vá ao Poço do Bambu. Ninguém até hoje achou o fundo
daquilo. Nem com adulto você pode entrar lá. Tem muita árvore ao redor,
quem nada lá corre o risco do pé se prender nas raízes se afogar e o corpo
sumir. E jamais nadem na represinha do senhor Tati também, não vá lá
com seu primo ou amiguinho. Se por acaso resolver pescar na represinha,
vá acompanhado do meu irmão. Ele é adulto e responsável. Conhece bem
a região. Nasceu e mora aqui todos estes anos. Por tanto ele entende do
que eu estou falando a respeito desta represa abandonada.
--- Acabou papai? Mãe? A Senhora também tem algum sermão pra
me dizer?
--- São recomendações necessárias para o seu bem meu filho. E eu
concordo com seu pai. Não dê trabalho a sua avó.
Enquanto o protocolo de recomendações seguia a todo vapor o
carro corria serpenteando pelas estreitas estradas do Arabizá levantando
uma nuvem de poeira por baixo de suas rodas. Minutos depois avistaram
o pequeno vilarejo do Arabizá. Havia ao todo umas cinqüenta casas
distribuídas ao longo de três ruas. O restante da população, que eram a
maioria, estava esparramado pelas pequenas fazendas vizinhas ao vilarejo.
As maiorias das casas do Vilarejo eram de telha curva, parede de adobe e
tinham quase as mesmas distribuições de cômodos. Geralmente eram
compostos por pequena sala de visita, dois ou no máximo três quartos e
uma cozinha modesta. Em todas as casas havia fogão a lenha! Mesmo
quando se fazia adaptações, reformas, ou nas poucas construções novas, a
regra era que a casa deveria ter um fogão à lenha.
A avó de Alexandre era mãe de seu pai. Ela tinha dois filhos homens,
um o pai de Alexandre e outro era o caçula que morava em uma casa
vizinha a dela no Arabizá. O tio de Alexandre era casado e tinha três
filhos, Uma filha na idade de 12 anos, que morava com eles, outra com 21
que se casou e foi morar em São Paulo com o marido, e o filho do meio
Herbert de 15 anos. Herbert não só era primo de Alexandre como também
seu melhor amigo.
21Outra curiosidade das casas do Arabizá era que em suas velhas
construções não havia banheiro interno. Os banheiros vieram depois.
Provavelmente começaram a partir da década de 70. As maiorias dos
banheiros ficavam anexados a casa, com a porta virada para o lado de
fora. Isto era quase uma regra. Abria-se a porta da cozinha para sair no
terreiro e lá estava a porta do banheiro. A casa da avó de Alexandre e de
seu primo Herbert não era diferente. Mas a casa da Avó de Alexandre e a
de seu primo ficavam no centro do Arabizá. Chamavam de centro porque
bem no meio havia uma grande floresta. Quem visse esta mata bem
fechada e com as copas das árvores enormes, poderia imaginar que ali,
algum dia, houve uma praça. Porém, aquele lugar não tratava de uma
antiga praça, e sim das ruínas abandonadas de um imenso e misterioso
casarão. Bastava observar mais de perto. O formato da mata era redondo,
por este motivo a última Rua do Arabizá era uma rua oval que
acompanhava o formato desta pequena floresta. Do lado interno não
havia casas, as casas estavam do outro lado da rua. Eram as mais antigas,
com grandes alicerces de pedras e quintais imensos separados por cercas
de bambu. Do velho casarão o tempo só deixou sobreviver às partes
pequenas de o alicerce circular do jardim. Ninguém se atrevia tomar
posse daquelas terras, cortarem suas árvores ou se quer entrar lá.
Embora fosse cheio de natureza e vida, o local vivia cercado de mistério,
lendas, verdades e superstições. Quando um ou outro morador atrevia-se
a entrar lá, nada de extremo ou grandioso acontecia. Mas muitas pessoas
evitavam por causa das sensações e sentimentos estranhos que tinham ao
adentrar esta mata. Uns sentiam dor de cabeça, outros eram tomados
por calafrios, alguns por melancolia ou simplesmente tinham fortes
intuições e cismas. E no mais a comunidade aceitou aquela mata no meio
da rua como quem recebe uma praça coletiva. Era propriedade comum.
Assim determinou os moradores. Dentro da mata havia sucos, e morros
nas terras, e muitas pedras grandes esparramadas. Isto dificultava que
alguém cortasse caminho pela mata. Por isto não houve quem se
atrevesse abrir uma trilha por lá também.
22Devidamente instalados no Arabizá a família Lemos deixou seu
único filho aos cuidados de sua avó e retornou a cidade. No pouco tempo
que teve do entardecer até a noite Alexandre percorreu quase todas as
imediações na companhia de seu primo. Foram na única escola da
comunidade, visitaram o Poço do Fubá, e terminaram a noite atrás da
Capela, com um pequeno grupo de amigos, contando causos e se
aquecendo em torno da fogueira. Alexandre tinha a vida de um
adolescente normal até aquele momento. Claro que tanto ele quando
seus pais não conseguiam entender o apego que o garoto tinha pelo
Arabizá. Deixar o conforto de uma casa grande e imponente na cidade,
para se abrigar na limpa, modesta e pequena casa da avó. E não era
apenas isto. Os atrativos da cidade eram muito mais empolgantes para
um jovem do que os da pequena comunidade do Arabizá. Por muitos
anos o próprio Alexandre se perdia em pensamentos inconclusivos a
respeito deste apego tão arraigando que ele sentia pelo Arabizá.
***************
2 - Pesadelo.
Em silêncio olhando para o teto, Alexandre tentava pegar no sono.
O cansaço físico e mental era muito e isto o impedia de desacelerar,
repousar e dormir. Sempre que vinha para o Arabizá era assim. Alexandre
se via arrebatado por um misto de vários sentimentos.
Então ele se lembrou do entardecer daquele dia e remergulhou na
melancolia nostálgica que imediatamente transportou seus sentimentos
aquela tarde morna. Contemplou em pensamento o sol se por atrás da
montanha vendo a penumbra se aproximar aos poucos, enquanto
pássaros, voando aos bandos, procuravam abrigo nos horizontes daquele
vilarejo pouco iluminado. Uma saudade monótona e ao mesmo tempo
aconchegante, sempre tentava se aproximar de Alexandre quando ele se
via sozinho nas tardes ou nas noites do Arabizá. Estas sensações vinham
feito um fantasma. Mistérios de algo que um garoto de 16 anos não
conseguia sondar. Tão pouco dimensionar este apego arraigado, quase
uma obrigação da alma que o levava ao Arabizá.
23Durante o dia Alexandre preenchia a vida com atividades juvenis.
Andava e vivia cercado de amigos, em companhia do primo, ou as voltas
ajudando e aproveitando a amizade atemporal que tinha com sua querida
avó.
Porém ao cair da noite, quando o silencio é táctil e a meia luz da lua
era sua única fonte morna de claridade a vazar pelas frestas do telhado
antigo e nos vão das portas e janelas. Quando este clima de isolamento
invadia o pequeno quarto de Alexandre era que ele se sentia um estranho
no ninho. Vinha o deslocamento. Uma sensação de que estar ali com a
freqüência e apego que ele estava não fazia sentido. Mas se não é razão
sua estadia, pois todas as coisas na cidade lhe eram muito mais atraentes
e abundantes que no Arabizá, o que lhe atraia aquele lugar? Pensava,
questionava, e tudo lhe parecia vago. Menos a estranha sensação de
deslocamento e a sede de resposta que angustiava e fazia divagar em
pensamentos agora cada vez mais inconclusivos e acelerados. Nada de
sono. Alexandre queria uma resposta. A imaturidade tem pressa, e o
tempo tem as suas razões. O atrito disto gerava uma busca agonizante.
Alexandre tentou distrair as idéias. Procurou pelo mugido das vacas, pios
de coruja, um uivo do que quer fosse, mas nem os grilos cantavam
naquela noite. Tudo era silêncio. Não havia se quer os estalos da madeira
se delatando no assoalho. Antes, quando tinha estas sensações, as
banalizavam e logo dava um jeito de se distrair. Dizia a si mesmo que isto
passa, toda noite é assim mesmo aqui no Arabizá, ou simplesmente se
consolava dizendo:
--- Relaxa Alexandre! Você só está estranhando a casa e o ambiente.
Sozinho a gente sempre pensa besteira.
Em seguida começava a bombardear a cabeça de idéias agradáveis,
e fazia planos de atividades de férias e logo em seguida conseguia pegar
no sono. Mas hoje era diferente. Os placebos psicológicos não estavam
surtindo efeito. Alexandre se sentia atraído por aquela correnteza de
pensamentos. Tentou de início livrar-se deles, mas isto só trouxe mais
pensamentos e questões.
24Talvez fossem sintomas da maturidade, vontade de enfrentar os
dilemas da vida e partir em busca de respostas mais satisfatórias a
respeito de si mesmo e das razões que compõe seu mundo. Também
havia o encantamento por aquelas questões. Ele mesmo ficou
deslumbrado de ver que sua mente era capaz de compor raciocínios tão
profundos, coerentes, e se relacionar com perguntas existenciais tão
maduras e complexas. Alexandre viu-se diante do adulto que havia dentro
dele e não conseguiu entende por onde ele entrou. Como ele estava
pronto? E por que só se manifestou naquele momento? Se fosse expor em
palavras Alexandre não conseguiria expressar. Estava embasbacado,
como ele com aquela pouca idade tinha este dom tão peculiar?
E foi no meio desta empolgação que Alexandre não se conteve.
Quebrou o silêncio da noite, perguntando a si mesmo:
--- Por que eu gosto tanto daqui?
Sentiu envergonhado com a pergunta, pois temeu que sua avó, que
dormia no quarto ao lado pudesse ter ouvido. Depois ele voltou à torrente
de pensamentos.
Agora parecia que sua cabeça era um lugar de todos. Um lugar
aonde se vinha fragmentos de respostas de todas as direções. Cada
fragmento tinha um som específico tal qual a voz de estranhos. Cada
fragmento de voz entrava e saia com uma resposta em sua cabeça, e às
vezes se quer conluia um raciocínio dando espaço à outra voz com outra
resposta ou outra pergunta.
Estes sons de pensamentos pincelavam coisas do tipo:
--- Olha Alexandre isto é um vício!
--- Não Alexandre é genético. Seu pai também ama o Arabizá.
--- Você é roceiro, e daí?
--- Pensa bem garoto você gosta daqui porque está de férias! Duvido
que você fosse gostar daqui se de estudasse ou trabalhasse no Arabizá!
25--- Admite mocinho você está apaixonado pela Naiara dos olhos
verdes...
--- No fundo você acredita que vai transformar em um grande
jogador de futebol e acha que vai ser descoberto aqui no Arabizá.
--- Não, isto se deve ao fato da sua família ser pequena, seus primos
e sua avó estão aqui, por isto...
--- Quando você casar nem vai lembrar que existe Arabizá...
--- Você tem aqui uma dívida de outros tempos.
--- Amanhã deve acordar cedo pra pescar...
--- Seu primo também pensa coisas deste tipo... Deve ser da idade...
--- Você precisa rezar...
--- Para de pensar, se não vai ficar doido, deixa essas questões pra
lá, isto não chega a nada...
--- Trata-se de questões antigas, pendências oriundas de vidas
passadas.
--- Você tem é de se benzer... Procurar um padre...
Alexandre mergulhava cada vez mais na busca de uma resposta
satisfatória. Na verdade já havia encontrado, porém relutava em não
aceitar a resposta que lhe parecia mais coerente. E foi ai que ele sem
querer quebrou o silencio outra vez dizendo:
----- Dividas de outras vidas, não!
Negar era preciso. Ele não entendia, acreditava, ou se quer aceitava
esta resposta. Em seu íntimo Alexandre estranhamente pressentia que
aquela era a mais coerente das respostas. Porém na superfície, sua
formação religiosa, seu medo de enlouquecer mergulhando em questões
complexas e a desconfiança implantada em torno da Doutrina o fazia
temer a simples hipótese de considerar este pensamento.
26Mas não teve jeito. Sua cabeça ferveu e o sono fugiu para outro
País. Alexandre estava convicto de que a loucura o havia arrebatado de
vez. Ele, que apesar de freqüentar a Igreja católica, não entendia de
experiências e vivencia religiosa. Para Alexandre Religião era como uma
matéria escolar. Algo que se estudava, praticava e seguia sem muito se
preocupar. Ele era assim. Dogmático. Aceitava e não questionava muito,
buscava sempre a zona de conforto evitando aprofundar-se.
Este fato se deve em parte a sociedade que nivela por baixo o
potencial intelectual dos Adolescentes. Os coloca na categoria de
espectadores, julgando-os incapazes de transcender questões que vão
além das grades curriculares.
Alexandre tinha isto arraigado em seu comportamento. Achava que
ser religioso estava simplesmente associado a ser bom e também era
simplesmente ser obediente aos pais e professores. E ser religioso era
uma questão mecânica que se resumia em freqüentar e participar no que
lhe fosse solicitado. Ele imaginava que um garoto da idade dele tinha de
seguir o bando e se preocupar com a marca do Tênis, com a roupa nova, o
perfume, as provas e em aproveitar mecanicamente a juventude, pois
todos diziam que ela ia passar rápido. Alexandre acreditava no caminho
prático, trabalhar, estudar, divertir. Achava que este tripé era o segredo
da vida feliz.
Mas de onde vinha aquele Alexandre? Este adulto? Este que
acredita em coisas que o garoto achava ser perigosa? Por que ele quer
quebrar tabus internos? Aonde ele quer chegar? Pra quê? De nada
adiantou. Alexandre estava preso em um remanso de pensamento. E por
mais que ele tentava fugir com outras idéias e assuntos a palavra “vidas
passadas” latejava em sua mente. Mas forte e intensa era a sua negação
sobre o tema, tão forte que seu organismo manifestou.
Começou latejando bem de leve, e aos pouco foi aumentando, até
que quase sem perceber Alexandre se deparou com uma intensa dor de
cabeça.
27Pronto, estava salvo. Agora toda a atenção do garoto esta voltada
para dor. A dor o fizera esquecer tudo. Ele agora está concentrado em
apenas livrar-se dela neste instante.
Assim Alexandre saltou da cama, seguiu em direção a mochila,
abriu-a e retirou uma cartela de comprimidos em um de seus muitos
compartimentos de zíper. Abriu a porta do quarto, caminhou até a
cozinha, pegou um copo de alumínio, encheu de água do filtro, engoliu o
comprimido e tomou em seguida a água do copo. Voltou para o quarto,
ajoelhou-se próximo a cama e puxou um penico de plástico de cor branca.
Fez xixi no penico, guardou penico em baixo da cama novamente, e deitou
na cama. A avó de Alexandre sempre trancava a porta da sala e da
cozinha deixando o banheiro da casa fechado do lado de fora. Se fosse
preciso ele a acordava, mas para fazer xixi, não tinha precisão. Alexandre
usava o penico. Ou “Suíte de pobre”, como ele costumava brincar com
avó.
Acomodado novamente na cama Alexandre só tinha um desejo.
Aguardar a dor ir embora. E aos poucos a dor foi se afastando da cabeça
do garoto. E à medida que ela se afastava lentamente o sono se
aproximava. E foi assim que Alexandre finalmente conseguiu dormir. O
medicamento abaixou um pouco sua pressão, e o sono também ajudou
neste processo. Relaxado, o corpo se entregou ao merecido descanso
reparador. Em alguns minutos, após a dor passar Alexandre estava
mergulhado em um sono profundo e pesado.
E foi então que veio o pesadelo.
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Em seus sonhos Alexandre sentia cheiros.
Por milésimos de segundo teve a sensação de saber estar sonhando.
Isto lhe ocorreu mais rápido que um flash.
Inspirou bem fundo e sentiu novamente o cheiro entrar em
suas narinas. Era cheiro de comida e bebida. Der repente se viu no meio
de uma grande festa.
28Começou a ouvir som de instrumentos, uma profusão de vozes a
cantar, falar, gritar e sorrir. Os sons se misturavam tornando-se
indecifráveis os diálogos, tal qual acontece em grandes bailes. Deu para
perceber que as luzes vinham de velas. Eram luzes amareladas,
trepidantes que pareciam dançar ao sabor dos ventos e vultos que
circulavam na casa. Sabia-se que era uma casa, pois via de relance,
paredes amareladas, telhas curvas, cumeeiras, assoalhos e grandes portais
vermelhos e grossos. Outro pressentimento invadiu Alexandre. De relance
entendeu que estava no Arabizá. Percebeu se tratar de coisas antigas. De
tempos e pessoas de outra época. Mas lhe intrigava o fato de não
reconhecer aquela casa onde estava em questão. Pois todas as casas do
Arabizá eram antigas e algumas até centenárias. Mesmo em um sonho
Alexandre saberia reconhecer qual delas ele estava. Mas aquela casa não
era familiar. Estava no Arabizá. Tinha uma forte intuição. Tão forte que lhe
passava a mais convicta das certezas. Mas não reconhecia aquela casa
grande e estranha.
O som foi aumentando. Alexandre tentava reter as informações.
Tudo em vão. Via pessoas, mas não via rostos, só vultos. Ouvia sons, mas
não entendia as palavras. Tudo aparecia e desaparecia feito fumaça.
Cenas se construíam e desconstruíam dando lugar a outras em um passe
de mágica. As únicas coisas que se mantinham fixas eram as certezas que
Alexandre tinha. Ali era o Arabizá, estava ele em uma festa, e as pessoas
não se vestiam,comiam, ouviam música ou dançavam como as pessoas de
1997. Tratava-se de outro tempo bem remoto.
Alexandre viu vultos de saias rodadas compridas e encardidas, viu
blusas de manga longa, viu homens de botas pesadas, calças de pano, e
camisas cheias de bordados e arremates, viu cabelos compridos, dentes,
alguns tortos, outros careados e quase todos amarelados. Via tudo isto se
dissolver e se construir na sua frente e estranhava-lhe o fato de ter
certezas. Uma delas era que estas pessoas tinham algumas posses e certo
prestigio social.
Der repente todos os vultos e vozes entraram em desespero e
começaram a gritar e correr por todas as direções.
29Começou a chover cacos de telha, ripas, rebocos, tijolos e um
grande clarão de fogo cresceram feito um raio. Quando deu por si
Alexandre se viu sentado no chão assistindo todo aquele caos. Não
conseguia se mexer e o pavor tomavam conta de seu corpo. Com muito
esforço olhou para cima e viu um enorme caibo vir em sua direção.
Já em outra cena de seu sonho Alexandre estava completamente
em pânico e não conseguia se mexer. Escutava uns gemidos, e pedidos de
socorro, mas aos poucos as vozes iam cessando. Sentia água subindo pelo
seu corpo lentamente. Isto lhe causava muito pavor. Não sabia onde
estava. Estava tudo escuro, frio, e os restos de construção pareciam
envolver o seu corpo feito um cobertor. Der repente à água subiu de uma
só vez cobrindo toda a sua cabeça. Em um surto de fobia e desespero
Alexandre puxava o ar e ele não vinha. Esforçava, debatia, tentava em vão
respirar, gritar por ajuda...
Com grande susto Alexandre acordou deste pesadelo.
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E foi assim que o garoto acordou do sonho. Agora com a
consciência retomada Alexandre percebeu que tudo não passou de um
grande e nítido pesadelo. Ele se assustou tanto que quando acordou
estava sentando na cama. Pensou em gritar pela avó pra saber se ela o
escutara sonhando. Mas não o fez. Imaginou que se ela tivesse ouvido
teria vindo em seu quarto lhe perguntar pelo ocorrido. E foi então que
Alexandre começou a sussurrar para si mesmo:
--- Calma Xandi, tudo não passou de um sonho moleque. Ninguém
te escutou sonhando medroso. Viu! A dor de cabeça já passou e meu sono
ainda continua. Volta a dormir porque amanhã você tem história pra
contar para o primo Herbert e pra vovó.
Quando estava sozinho Alexandre gostava de conversar baixinho.
Chamava este habito de loucura do bem. Dizia ser do bem, pois já flagrara
seu primo, avó, pai, mãe e amigos agindo assim também. Por isto chama
de loucura do bem. Algo estranho, mas bom e que não causava mal
alguma e muita gente que ele conhecia praticava.
30Alexandre se levantou da cama. Foi até a cozinha bebeu um copo de
água. Olhou pelo basculante da cozinha o terreiro da casa. Era a única
janela de vidro desta residência. Um basculante pequeno, mas por ele
Alexandre viu a luz doce da lua dar contorno às formas do terreiro. Sentiu
um calafrio correr pela sua coluna. Aquele terreiro iluminado e silencioso
parecia cenário perfeito para mistérios e causos antigos. Estava tudo
muito quieto e um ar de cisma sinistra sondou os sentimentos de
Alexandre. Em seguida Alexandre deu de ombros para este medo que
sentira e voltou para o quarto. Deitou na cama enfiando-se debaixo dos
cobertores e procurando um lado aconchegante no colchão e no
travesseiro. Logo, logo ele voltou a dormir.
E outro sonho lhe pegou de relance.
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Em seu novo sonho Alexandre percebeu que a escuridão era
intensa. Também reconheceu estar no Arabizá. Sim, ele sabia até o local
onde se encontrava. No Morro do Curió. Estava subindo o Morro do Curió
à noite. Era uma noite muito escura, sem lua, sem estrelas, e não havia
lanterna ou luz iluminando o caminho. Alexandre não via seu corpo,
apenas via as siluetas pouco definidas de si mesmo e de uma pequena
trilha de terra. Também tinha a sensação de estar caminhando, pois sentia
a cadência do corpo feito quem caminha morro abaixo. Tentou
incessantemente ver o próprio corpo, mas não conseguiu.
Em um dado momento de seu sonho Alexandre viu os braços, suas
mãos e elas seguravam um objeto que parecia ser um chicote.
Em sua frente surgiu um vulto ainda mais negro que a escuridão.
Este vulto tinha contornos de um menino. Parecia esquelético curvado e
frágil. Alexandre começou a chicotear este vulto. O vulto caia pelo chão.
Dava para ouvir o barulho de seu corpo caindo sobre o cascalho da trilha.
Quanto mais o vulto se defendia com as mãos, se agachava ou tentava se
esquivar mais Alexandre o chicoteava.
31Alexandre sentia um prazer mórbido em chicotear este vulto.
Sentia muito ódio por aquela criatura. Tanto que a raiva lhe despertava
grande euforia e prazer. Causar dor no vulto lhe dava razão de estar ali. E
ele chicoteava para evitar pensar e para dar vazão aos sentimentos.
Pressentia que o vulto merecia o sofrimento e ele tinha motivos para se
vingar do vulto. Só não entendia as bases destes motivos.
De rápido relance o cenário do sonho mudou novamente.
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O que mais ele estranhou nesta cena foi à nitidez intensa e clara
com que via e enxergava as coisas ao seu redor. Imediatamente Alexandre
trocou de sonho. Agora estava em um barco no meio de um lago
gigantesco. Uma incrível sensação de conhecer aquele lugar lhe tomou
por inteiro. Era um lago maravilhoso! Imenso e a paisagem ao redor deste
lhe parecia muito familiar. Outra vez Alexandre reconheceu, em seus
sonhos, estar no Arabizá. Aquela era sem sombra de dúvidas a região
onde estavam à estrada velha e a represa abandona do Senhor Tati. Só
que em seus sonhos a represa não era abandonada. Muito pelo contrário.
Era um grande lago, com suas margens límpidas e águas bem
transparentes. A distância viu uma bela e bem cuidada estrada de terra. A
estrada acompanhava a margem esquerda do lago formando um grande
“S”. Avistou de longe, quase se misturando no horizonte, o que lhe
parecia ser um imenso muro de pedra. Deduziu que aquela estrutura
gigantesca seria a comporta daquele imenso lago. Ele também entendeu
que por baixo das águas deste lago estavam o Poço do Bambu e seu
sumidouro, as dezenas de minas e açudes e na parte mais funda a
represinha. Tudo isto devia estar dormindo abaixo daquele monumental
espelho d água.
Alexandre ficou espantado quando olhou o próprio corpo. Ele
parecia ser outra pessoa. Era muito branco. Sua pele tinha tonalidade
pálida. Acariciou o próprio braço e viu que era tão pálido que conseguia
ver os contornos de suas veias sob sua pele. Depois estranhou suas
roupas. Eram limpas, engomadas, elegantemente discretas.
32Percebeu que estava de sapato preto de cano longo e couro groso.
Logo pressentiu se tratar de alguém importante e rico. Notou também que
as roupas eram de outros tempos. Sabia que estava em outro corpo, mas
pressentia que este estranho ao mesmo tempo era ele. Tinha a mesma
idade, mas a cor, os movimentos, a personalidade e maneira de pressentir
as coisas eram distintas. Foram alguns segundos de espanto e admiração.
Quase um estado de êxtase. Mas tão breves eram as imagens, mais
fugazes eram as sensações. E em tudo Alexandre punha atenção e tentava
reter a intensidade de toda aquela informação. Inspirou novamente e
sentiu um cheiro forte e agradável vindo de seu corpo. Era o odor de seu
perfume. Um odor amadeirado com toque adocicado de uma flor que ao
mesmo lhe era familiar, no entanto o nome se fazia desconhecer.
Conhecia o cheio. Novamente estranhou o fato de entender estar dentro
de um sonho. Ficou maravilhado e confuso por estar sentindo cheiro
novamente. Então tudo se desfez outra vez. E como sonhos não têm nexo
e nem tão pouco regras o garoto mudou de cenário novamente.
Agora Alexandre estava dentro de um barco maior no meio do
próprio lago. Parecia uma noite muito clara e as imagens eram nítidas.
Der repente Alexandre ergue um imenso enrolado de pano branco e
corda. Debaixo destes panos parece haver um rapaz com a mesma
estatura que ele. Este moço reluta, e tenta em vão se mexer. A boca desta
criatura não emite som, apenas um grunhido abafado, agonizante e
fundo. Sem dó nem piedade Alexandre joga este corpo amarrado na água
e fica assistindo atônito o corpo afundar. O corpo afunda lentamente e à
medida que vai afundando nas águas os lençóis e cordas vão se
desenrolando. De súbito Alexandre vê o seu próprio rosto refletido no
espelho d água. É o mesmo rosto pálido, e esbranquiçado da cena
anterior. Alexandre toma um baita susto. O corpo que afundava retorna
a superfície com grande fúria e velocidade. Ele salta para cima de
Alexandre tentando puxá-lo para o fundo das águas com ele. Mas o que
mais intrigou e deixou Alexandre em pânico foi o fato de o corpo estar
livre dos lençóis e o rosto desta criatura era o mesmo que ele viu refletido
no espelho d água.
33Ou seja, Alexandre e o corpo eram a mesma pessoa, ou seriam seres
diferentes? Um forte estado de agonia e pavor tomou conta de Alexandre.
Foi que de relance ele ouviu um grito forte, seco e muito
sinistro. Um grito tão agudo e carregado de dor, mas tão estranho e
monstruoso que parecia vir de dentro da sua alma. Aquele som se
misturou com tudo e dominou por completo todo o ser de Alexandre. O
susto e a confusão ganharam espaço. Tudo era tão real que Alexandre
acordou assustado novamente.
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Alexandre ergueu o corpo na cama em uma velocidade
admirável vindo a ficar sentando na nela outra vez. Por vários segundos
ficou ali estático, com o olhar voltado para o nada, tentando distinguir o
real do imaginário. O grito fora tão claro e visceral que Alexandre não
conseguia entender se veio do fundo de seus sonhos nítidos, ou fora
alguém real que berrara desta forma agonizante, naquela madrugada fria
do Arabizá de 1997.
Aos poucos Alexandre fora digerindo a situação. Assim a consciência
foi se retomando lentamente até fazê-lo compreender que tudo não
passara de um pesadelo outra vez. E foi então que ele disse:
--- Meu Deus do céu! Que pesadelo! Deve ser por causa do remédio.
Será que já são cinco horas da manhã? Que foi isto meu pai? Agora
pesadelos têm segundo tempo igual a jogo de futebol?
Alexandre olhou as horas no celular que estava na cabeceira da
cama. Eram três e quarenta e cinco. Logo em seguida Alexandre deitou
novamente na cama, puxou as cobertas e levou a mão sobre o calção do
pijama tomando um baita susto:
--- Nossa não acredito que isto está acontecendo comino! E agora?
Era só o que me faltava! Não bastasse toda esta sonharia acabei urinando
na cama!
34Alexandre verificou novamente com cuidado seu corpo. Sentiu
certo Alívio em constatar que não havia molhado a cama e sim apenas
parte da cueca e do calção:
--- Ainda bem! Ufa! Foi só um jato que escapuliu. Ninguém nem vai
ficar sabendo disto.
Alexandre começou a bolar um plano para não deixar ninguém
saber que ele havia feito xixi nas calças. Igual ao que aconteceu com a dor
de cabeça este fato lhe tirou a atenção dos sonhos. Antes Alexandre
estava cabreiro com a nitidez e com a capacidade de sentir cheiro durante
os sonhos. Agora ele só se preocupava em resolver o problema do xixi.
Como todo Adolescente ele era muito vaidoso e não queria virar
motivo de piada em todo Arabizá. Isto ele não ia permitir. E sendo ele um
dos jogadores do time dos sonhos do Arabizá havia sua legião de meia
dúzia de meninas. Suas fãs e futuros namoricos. Este era sem dúvida a
sua principal fonte de vaidade e pudor e a principal razão para ele se livrar
das evidencias do ocorrido tal qual um criminoso se livra das pistas de um
crime.
O plano fora traçado. Alexandre teria de fazer grandes sacrifícios.
Primeiro ele saltou da cama e tirou toda a roupa do corpo. Ficou
completamente nu no meio do quarto sem acender a luz para não acordar
avó. Depois ele pegou uma sacola plástica na mochila e colocou a roupa
nela. Deu um nó na sacola. Em seguida escondeu a sacola no fundo da
mala. A idéia era levar para Cristalina a sacola com a roupa e quando a
empregada se distraísse colocaria a roupa na máquina junto com as
outras. Sua avó não poderia lavar aquelas peças, porque ela separava as
roupas uma a uma. Como ele nunca lavava roupas também estranharia se
ele lavasse aquela. Tinha de ser do jeito que ele planejou. E esta fora a
parte mais fácil do plano.
Alexandre começou a tremer de frio. Tentava controlar para não
bater o queixo e não fazer barulho com toda a tremedeira. A segunda
parte do plano era mais ariscada. Ele precisava se lavar sem usar o
banheiro. Não poderia pedir a chave para a avó.
35Ela tinha boa memória e certamente estranharia o fato dele trocar
de roupa sem esperar a noite terminar. O cheiro de xixi poderia levantar
suspeitas, pensou Alexandre. Ele precisava se livrar daquelas evidências
sem a ajuda de ninguém. Caso contrário seus planos de não ser
descoberto iriam por água abaixo.
O jeito era se lavar no terreiro. E foi o que Alexandre fez.
Abriu a janela de madeira do quarto com muito cuidado para evitar
rangido, e saltou para o terreiro. Seria rápido e simples. Já que era jovem,
estava de noite, e sua avó não criava cachorro por causa do gato de
estimação na casa. Por este motivo Alexandre poderia entrar e sair pela
janela de seu quarto sem levantar suspeita. E ele já fizera isto várias vezes
nas noites quentes de verão quando perdia o sono e caminhava no
terreiro aproveitando a brisa da noite. A única diferença era que aquela
noite estava muito fria e ele estava nu. Apesar de não estar ventando o ar
estava frio feito a gaveta de verduras de uma geladeira. Era noite de lua
cheia e o terreiro se encontrava claro e dava pra ver com nitidez a direção
das coisas. Alexandre correu despido para o tanque de cimento próximo
a casa. Não quis se enrolar na toalha temendo transferir o cheiro para ela.
Foi até o tanque e cobrindo as partes com as mãos. Tremia feito uma vara
verde e seus lábios estavam ficando roxos de frio. Ia retirar um farto
balde de água para limpar abaixo da cintura quando se lembrou de um
detalhe:
--- Se eu retirar à água da caixa a bóia vai ligar para repor outra.
Não posso fazer isto. Esta velha bóia faz mais barulho que um avião! Até
avó que tem o sono pesado pode acordar com o escândalo que esta
maldita bóia faz. E agora o que eu faço? Não posso voltar e deitar sem me
lavar, meu cheiro no dia seguinte vai me denunciar.
Alexandre era todo rompante e confusão. Estava tão preocupado
com o fato de se limpar e se livrar daquele ocorrido sem deixar suspeita.
Tão preocupado que começou agir sem muito pensar. Cometeu vários
erros grotescos e primários. Coisa que se tivesse parado para pensar
melhor não necessitaria nem ter saído do quarto. Mas naquele momento
Alexandre não agia movido pela razão. Agia movido pela vontade. E sendo
assim acatava a primeira idéia que aparecia em sua mente.
36De súbito teve uma idéia. Correu em direção ao paiol de milho da
casa de sua avó. Atrás do paiol havia a entrada de uma mata. E pouco
antes de adentrar esta mata tinha um pequeno riacho. Alexandre
agradeceu o fato de sua avó não possuir cachorro. Se tivesse faria um
grande escândalo. O cão mais próximo era o da casa de seu primo
Herbert. Mas este animal era tão velho que jamais se atreveria sair de sua
casinha para percorrer o terreiro naquela friagem toda. Nem o cão e nem
o resto do Arabizá sairia de casa naquela madrugada fria. No mais os
animais do Arabizá estavam familiarizados com o cheiro de Alexandre.
Enquanto pensava estas coisas Alexandre tentava se lavar o mais
rápido possível. Sentia muito frio, a água estava mais gelada ainda e pra
piorar ele teria de ficar um tempo atrás do paiol aguardando a água secar.
Era um tempo que não passava nunca. E quanto mais tremia mais
Alexandre sonhava como o travesseiro macio, o colchão quentinho e o
conforto de suas três cobertas aconchegantes. Alexandre tremia
encolhido atrás do paiol. O tempo parecia remar contra a maré. A
sensação era que isto não ia acabar jamais. Em um rompante Alexandre
olhou na lateral do paiol e planejou sua volta para o quarto. Parte do seu
corpo estava úmida, porém nada de mais. Isto terminava de secar na
cama. E como era apenas água não traria nenhum transtorno. Então
Alexandre começou a conversar consigo mesmo pra passar o tempo e
planejar sua estratégia de retorno ao quarto:
--- Pronto Xandi, seco, seco, não vai ficar não! To meio úmido, mas
não vai molhar o lençol. Isto seca sozinho sem deixar rastro. Ainda bem
que o terreiro da vovó é muito bem varrido. Se não fosse eu poderia sujar
o pé. Tanto faz também, se eu sujar falo que saí pra ver alguma coisa
suspeita. O importante é ninguém ficar sabendo que fiz xixi na cama.
Terminado o diálogo consigo mesmo Alexandre deu o primeiro
passo em direção a casa. Este foi o primeiro e último passo que ele
conseguiu dar.
37Ao virar repentinamente para voltar á casa Alexandre viu de
relance a mata. O que ele viu lá o deixou completamente petrificado.
O que era Aquilo?
Um medo intenso percorreu todo o corpo de Alexandre. Este pânico
desceu pela sua coluna provocando mais tremedeira, frio e arrepiando
todos os seus pelos. Seus olhos se arregalaram, as pupilas se dilataram o
máximo que puderam. Ele perdeu o domínio sobre o corpo. Não
conseguia correr, e se esforçava para que a tremedeira não o jogasse no
chão de vez. Permaneceu de pé, paralisado, e agonizando de medo. O
estomago revirava, o coração parecia que saltava pela boca, a cabeça
fervia de pensamentos acelerados. Alexandre permanecia ali. Parado,
tentando involuntariamente ficar imóvel. Tinha a impressão que seu
corpo queria ficar ali e passar despercebido aos olhos daquela criatura, ou
seja lá o que aquilo fosse.
O que se plantou diante dos olhos de Alexandre naquele momento
foi um fenômeno. Um evento de natureza desconhecida por muitos e por
ele. Não há nada mais nocivo para o homem do que a sua própria
ignorância. Por este motivo o assombro de Alexandre diante deste
ocorrido por pouco não extrapolou a linha tênue da razão e da loucura.
Não fosse a sua juventude, sua saúde de ferro e coração forte há esta hora
ele poderia até ter desfalecido de tanto susto. Alexandre, naquele
momento sofria os prejuízos da falta de conhecimento científico e colhia
os frutos de uma busca espiritual superficial. Ao depara-se com aquele
fenômeno sua mente buscou compreensão para definir o ocorrido. Porém
tudo o que sua cabeça conhecia estava relacionado a assombrações,
demônios, almas perdidas, lobisomens, criaturas sinistras de filme de
terror, extraterrestres que seqüestravam pessoas e as matavam, e todo
tipo de coisa ruim. Estes preconceitos agravaram seu medo e acentuaram
profundamente o assombro diante o que ele viu.
Na verdade o que Alexandre viu, e que quase o matou de medo, foi
uma grande bola de fogo azulada. Tinha uma luz pouco luminosa, a
coloração de suas chamas era a mesma coloração que tem o fogo dos
fogões a gás.
38Era mais ou menos do tamanho de uma bola grande de fisioterapia.
Seu formato oscilava entre cilíndrico, oval e outras formas arredondadas.
Parecia consumir a si mesma pela própria luz. Uma luz fraca como já foi
dito. E o mais assombroso era que esta bola flutuava livremente no
espaço sem nenhuma base de sustentação ou ponto de origem de suas
chamas. Esta luz surgiu no repente vindo do fundo da mata. Flutuou em
linha reta na direção da mina, dando a entender estar indo de encontro a
Alexandre. Chegando à mina a luz acompanhou o curso d água por alguns